. Uma das primeiras menções a
“castañeta” aparece nesta comédia publicada em Nápoles em 1517.
. O texto não permite determinar se
“castañeta” se refere ao instrumento ou à ação de estalar os dedos.
Bartolomé de Torres Naharro (c. 1485 – c. 1520-1530) é uma figura-chave no desenvolvimento do teatro renascentista em língua castelhana. Sua coletânea Propalladia, publicada em Nápoles em 1517, constitui uma valiosa antologia dramática e um dos primeiros tratados em língua vernácula sobre preceptiva teatral. Nela, Torres Naharro propõe uma classificação das comédias em dois grupos: “a fantasia” (de invenção livre) e “a notícia” (baseadas em fatos reais ou verossímeis), acompanhando suas obras com reflexões sobre estrutura, ação dramática e adequação estilística.
A Comédia Trofea, pertencente ao grupo de comédias “a notícia”, tem um pano de fundo diplomático, possivelmente alusivo a uma embaixada portuguesa junto ao papa Leão X, embora o seu enredo principal não seja o foco deste comentário. O que nos interessa aqui é o modo como a obra reflete práticas musicais e corporais do âmbito popular, incorporadas de forma natural no diálogo das personagens. Essa estratégia, própria do realismo cênico de Torres Naharro, permite entrever elementos da cultura popular e da gestualidade do século XVI.
Um trecho particularmente ilustrativo é protagonizado pelas personagens Caxcolucio e Juan Tomillo, que introduzem um momento coreográfico no decorrer da sua conversação:
CAXCOLUCIO
Que nos prace, juri a nos,
y an que queremos bailar.
JUAN TOMILLO
¿Quiéreslo tú comenzar?
CAXCOLUCIO
Miafé, ha.
JUAN TOMILLO
Pues apártatem’allá.
Repica la zapateta,
descaxca la castañeta.
La escena evoca un ambiente festivo e informal. Al decir
"repica la zapateta", el
personaje invita a zapatear con energía, es decir, a marcar el ritmo con los
pies, probablemente en un contexto de danza popular. Este uso del término zapateta[1]
(aumentativo ou familiar de zapateo) sugere um tipo de percussão corporal que frequentemente acompanha danças de caráter não cortesão.
A linha seguinte, “descaxca la castañeta”[2], introduz um elemento de especial interesse para a história dos instrumentos musicais. O verbo descaxcar, empregado aqui em sentido expressivo, parece indicar o início do toque ou do repique da castañeta. Este termo, embora hoje em desuso, está documentado como sinônimo de castañuela[3] — o pequeno idiofone de madeira que se toca com os dedos e acompanha danças tradicionais na Península Ibérica e no sul da Itália.
Estamos, possivelmente, diante de um dos testemunhos mais antigos da presença do vocábulo castañeta[4] em um texto teatral. É significativo que apareça no singular, quando o habitual é encontrá-lo no plural (castañetas), referindo-se ao par de peças que compõe o instrumento. Essa forma singular pode ter aqui um sentido genérico ou expressivo, embora também caiba uma leitura alternativa: o termo castañeta poderia não aludir exclusivamente ao instrumento musical tal como hoje o entendemos, mas sim à ação de “fazer castañetas”, isto é, produzir estalos rítmicos com os dedos, em particular golpeando o dedo médio contra o polegar para marcar o compasso da dança. Essa prática, mais vinculada ao gesto corporal do que ao uso de um objeto externo, remete a formas de acompanhamento rítmico espontâneo que conviviam com o emprego de instrumentos propriamente ditos.
Dado o contexto festivo e coloquial do diálogo, não é possível determinar com total certeza se castañeta alude ao instrumento físico —as castanholas tal como as conhecemos— ou à ação rítmica manual. Seja como for, o termo funciona na cena como marca sonora, coreográfica e cultural, reforçando o tom popular e dinâmico do momento representado.
Esse trecho dinamiza a ação dramática por meio da incorporação da dança e do ritmo, e oferece uma janela para as práticas musicais da época, inseridas no teatro como reflexo dos usos sociais. O fato de Torres Naharro incorporar esse tipo de referências em suas obras sublinha o seu interesse em reproduzir fielmente a fala, os gestos e os costumes de seu tempo, alinhando-se com uma dramaturgia realista, viva e conectada com a experiência do espectador.
Em consequência, a Comédia Trofea deve ser entendida como fonte de notável interesse para o estudo do patrimônio imaterial do Renascimento hispânico, especialmente no que se refere à música, à dança e aos modos de percussão manual e corporal empregados em contextos não cortesãos.
BIBLIIOGRAFÍA COMENTADA
Chardron, E e B.H. De Moraes, B:H: Thesouro da lingua portugueza: 2: C- DYTI.. Portugal. 1873.
Diccionario de Autoridades de la Real Academia Española (1726-1739), versión 1.0 (19/04/2012).
Torres Naharro, Bartolomé de. Propalladia. Estampada en Nápoles po Ioan Pasqueto e Sallo. 1517.
Vieira, Ernesto. Diccionario musical: ornado com gravuras e exemplos de musica. Portugal: Typ. Lallemant, 1899.
[1] O Diccionario de Autoridades da língua castelhana, tomo VI, 1739, define ZAPATETA como : “El golpe, ò palmada, que se dá en el pié, ù zapato, brincando al mismo tiempo en señal de regocijo. Es voz festiva. Lat. Calcei ictus manu factus, vel festiva percussio. CERV. Quix. tom. 1. cap. 25. Luego sin mas, ni mas dió dos zapatétas en el áire. ALFAR. part. 1. lib. 1. cap. 5. Levantó la pierna, y en el áire dió por delante una zapatéta, con que me alivió un poco”.
[2] CASTANHETAS, s . f. pl. ( Diminutivo de Castanha, por causa da similhança do instrumento com as cascas das castanhas) . Instrumento d'origem hespanhola, consistindo em duas pequenas peças de páo ou marfim , concavas, que tendo- as juntas por uma fita ou cordelinho e ligadas ás mãos, a pessoa que dança bate uma contra a outra para marcar os movimentos e a cadencia. Hoje diz- se mais usualmente Castanholas. Som que se dá com os dedos maior e pollegar, apertando um contra a cabeça do outro, e soltando com força contra a raiz do pollegar. Thesouro da lingua portugueza: 2: C- DYTI.. Portugal: E. Chardron e B.H. De Moraes, 1873.
[3] CASTANHETAS OU CASTANHOLAS, s . f. pl. Instrumento de percussão ,composto de duas pequenas peças em forma de concha, feitas de madeira rija ou de marfim; ligam se com uma fita ou cordão formando charneira que o tocador enrola entre os dedos medio e annular de modo que a castanhola penda na palma da mão ; agitando- se os dedos e a mão, fazem estes percutir as duas peças da castanhola uma na outra, obtendo-se successões de sons mais ou menos rapidas, segundo a habilidade do tocador. Emprega- se sempre um par de castanholas em cada mão.
As castanholas , cuja origem é oriental, constituem um dos instrumentos mais populares em Hespanha ; os andaluzes principalmente servem-se d'ellas com uma habilidade extraordinaria, produzindo effeitos rythmicos picantes pela rapidez com que fazem succeder as percussões.
Na banda militar e na orchestra emprega- se algumas vezes as castanholas como instrumento accessorio aos de percussão ; n'este caso faz- se uso de umas castanholas especiaes, que em vez de serem percutidas com os dedos, teem um cabo que se agita , o que é mais facil para quem não sabe tocal- as segundo o modo popular. As castanholas de cabo não podem porém produzir os redobres tão rapidos como os que dão as populares . Vieira, Ernesto. Diccionario musical: ornado com gravuras e exemplos de musica. Portugal: Typ. Lallemant, 1899.
[4]O
Diccionario de Autoridades da lingua castenhana, tomo II, 1729, define CASTAÑETA como: “Instrumento de palo o marfil compuesto
de dos mitades, que por unos agujeros que tienen en una como ceja hecha a un
lado, se unen con una cinta con que se atan a uno de los dedos. Están cóncavas
estas dos mitades, y juntan las circunferencias, y con dar contra la palma de
la mano, o apretando el dedo de en medio contra el pulgar, hacen ruido. Ponense
dos, una en cada mano, y sabiendo tocarlas, acompañan los tañídos del báile.
Llamáronse Castañetas por formar las
dos mitades juntas como una castáña. Latín. Crotalum, i. PIC. JUST. fol. 69. Y
en el áire repiqué mis castañetas de repicapunto. GONG. Rom. burl. 9.
Y si quiere Madre
dar las castañetas,
podrás tanto de ello
bailar en la puerta.